quarta-feira, 24 de junho de 2009

Breve História da Literatura II - Dos Cronistas aos Clássicos e Humanistas


MENINA E MOÇA

1. Monólogo da Menina

Menina e moça me levaram de casa de minha mãi para muito longe. Que causa fosse então daquela minha levada, era ainda piquena, não a soube. Agora não lhe ponho outra, senão que parece que já então havia de ser o que despois foi. Vivi ali tanto tempo quanto foi necessário para não poder viver em outra parte. Muito contente fui em aquela terra, mas, cuitada de mim, que em breve espaço se mudou tudo aquilo que em longo tempo se buscou e para longo tempo se buscava. Grande desaventura foi a que me fez ser triste ou, per aventura, a que me fez ser leda. Depois que eu vi tantas cousas trocadas por outras, e o prazer feito mágoa maior, a tanta tristeza cheguei que mais me pesava do bem que tive, que do mal que tinha.

Bernardim Ribeiro



Endechas a Bárbara escrava


Aquela cativa
Que me tem cativo,
Porque nela vivo
Já não quer que viva.
Eu nunca vi rosa
Em suaves molhos,
Que pera meus olhos
Fosse mais fermosa.

Nem no campo flores,
Nem no céu estrelas
Me parecem belas
Como os meus amores.
Rosto singular,
Olhos sossegados,
Pretos e cansados,
Mas não de matar.

U~a graça viva,
Que neles lhe mora,
Pera ser senhora
De quem é cativa.
Pretos os cabelos,
Onde o povo vão
Perde opinião
Que os louros são belos.

Pretidão de Amor,
Tão doce a figura,
Que a neve lhe jura
Que trocara a cor.
Leda mansidão,
Que o siso acompanha;
Bem parece estranha,
Mas bárbara não.

Presença serena
Que a tormenta amansa;
Nela, enfim, descansa
Toda a minha pena.
Esta é a cativa
Que me tem cativo;
E. pois nela vivo,
É força que viva.

Luís de Camões



Erros meus, má fortuna, amor ardente

Erros meus, má fortuna, amor ardente
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a fortuna sobejaram,
Que pera mim bastava amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas que passaram,
Que as magoadas iras me ensinaram
A não querer já nunca ser contente.

Errei todo o discurso de meus anos;
Dei causa [a] que a Fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanças.

De amor não vi senão breves enganos.
Oh! quem tanto pudesse, que fartasse
Este meu duro Génio de vinganças!

Luís de Camões




Velha:

Rogo à Virgem Maria,
Que quem me fez erguer da cama,
que má cama e má dama,
e má lama negra e fria.
Má mazela e má courela,
mau regato e mau ribeiro,
mau silvado e mau outeiro,
má carreira e má portela.
Mau cortiço e mau sumiço,
maus lobos e maus lagartos,
nunca de pão sejam fartos!
Mau criado, mau serviço,
má montanha, má companha,
má aranha, má pousada,
má achada,má entrada,
má aranha, má façanha.

Má escrença, má doença,
má doairo, má fadairo,
mau vigairo,mau trintairo,
má demanda,má sentença,
mau amigo e mau abrigo,
mau vinho e mau vizinho,
mau meirinho e mau caminho,
mau trigo e mau castigo.

Irá de monte e de fonte,
irá de serpe de drago,
perigo de dia aziago
em rio de monte a monte,
má morte, má corte, má sorte,
má dado,má fado, má prado,
mau criado, mau mandado,
mau conforto te conforte.

Rogo às dores de Deus,
que má caída lhe caia,
e má saída lhe saia
trama lhe venha dos céus.
Jesu! Que escuro que faz!
Ó mártere San Sandorninho!
Que má rua e má caminho!
Cego seja quem m'isto faz!

Ui! Amara, percudida!
Jesú,a que m'eu encandeio!
Esta praga donde veio?
Deus lhe apare negra vida!

Gil Vicente, "Quem tem farelos?"



Sem comentários:

Enviar um comentário