domingo, 28 de junho de 2009

Boas Férias, também, se saires do país!

Boas Férias, se ficares por cá!

Projecto e Balanço Final do Clube, Mensagem Final: "Para Além da Curva da Estrada", Alberto Caeiro





Para além da curva da estrada

Para além da curva da estrada
Talvez haja um poço, e talvez um castelo,
E talvez apenas a continuação da estrada.
Não sei nem pergunto.
Enquanto vou na estrada antes da curva
Só olho para a estrada antes da curva,
Porque não posso ver senão a estrada antes da curva.
De nada me serviria estar olhando para outro lado
E para aquilo que não vejo.
Importemo-nos apenas com o lugar onde estamos.
Há beleza bastante em estar aqui e não noutra parte qualquer.
Se há alguém para além da curva da estrada,
Esses que se preocupem com o que há para além da curva da estrada.
Essa é que é a estrada para eles.
Se nós tivermos que chegar lá, quando lá chegarmos saberemos.
Por ora só sabemos que lá não estamos.
Aqui há só a estrada antes da curva, e antes da curva
Há a estrada sem curva nenhuma.

Alberto Caeiro


Esta é a nossa despedida! Mas só por este ano lectivo!Para o próximo, cá estaremos de novo!...

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Lenda da Bugiada e Mouriscada

Nos tempos em que os Mouros povoavam a Serra de Cuca Macuca, hoje de Santa Justa, em Valongo, e Serra da Pia na encosta entre Valongo e terras de Aguiar de Sousa, o Rei dessa tribo tinha uma filha primogénita que, ao fazer os seus 16 anos de idade, adoeceu gravemente.
O Rei, muito poderoso e abastado, ao ver a princesa desfalecer, tentou por todos os meios ao seu alcance curar a nobre e bonita descendente, procurando os melhores cientistas e curandeiros para obter a cura da idolatrada princesa, mas, nada fazia suster o mal e sofrimento da grave doença.
Perto do seu reino, havia um povo de raça visigoda, que se dedicava aos trabalhos agrícolas e professava a religião cristã, a quem recorria nas suas aflições e pelo qual era sempre atendido.
O Rei mouro, embora incrédulo, ao ouvir falar desses milagres concedidos aos Cristãos, procurou o velho Rei cristão e pediu-lhe para interceder junto do Santo, por sua filha princesa, tudo prometendo para conseguir os seus desejos.
Os Cristãos acederam ao pedido, recorrendo ao seu venerando santo orago e, perante a grande admiração da tribo mourisca, a princesinha retomava a saúde tão desejada, voltando mais bonita que nunca ao seio da sua tribo, para alegria do seu povo e glória de S. João.
O Rei, ufanoso e cheio de autoridade, ordenou grandes festas em honra de S. João, reunindo toda a tribo; convidou os Cristãos a participar nas festas, mandando confeccionar um lauto banquete e no fim o Santo seria levado em majestosa procissão, com o andor conduzido pelos Mouros.



Convencido de que daí em diante toda a força e caprichos das suas resoluções estariam na veneranda imagem, começou a pensar em apoderar-se da mesma chegando a reivindicar essa posse, mas os Cristãos não estavam nessa disposição, logo fazendo ver que não cederiam o Santo milagroso.
Ao iniciar o grande banquete, o Rei mouro fez o pedido formal aos Cristãos, que foi logo recusado.
O Rei mouro, enraivecido e orgulhoso, ordenou que durante o animado banquete os Cristãos fossem humilhados e, assim, deu ordem aos servidores para eles serem servidos em mesa separada.
Os Cristãos, entristecidos e atemorizados, sujeitaram-se às humilhações, mas tomaram parte na festa.
Terminada a grande celebração, o Rei mouro voltou a exigir em tom autoritário e ameaçador, a imediata entrega do Santo, sem qualquer reserva e condição, mas os Cristãos contestaram fortemente essa atitude, o que levou o Rei mouro a ordenar aos seus apaniguados para tomarem pela força a veneranda imagem milagrosa.
Os Cristãos, embora reconhecessem o grande poder físico e guerreiro dos seus adversários e opressores, organizaram-se e prepararam-se para qualquer ataque traiçoeiro, firmes na sua crença inabalável no Santo protector. Pediram a S. João mais um milagre em tão afrontosa situação, pois, sem a sua imagem, não poderiam sobreviver nas suas vicissitudes. Invocando do Santo a protecção para os combates ferozes que teriam de travar com os seus insaciáveis inimigos, logo foram incentivados por forte vontade de lutar até à derrota total dos seus terríveis opositores.



Os Mouros embora valentes guerreiros, eram supersticiosos e, portanto, havia que pensar em certas artimanhas que os pudessem atormentar para que desanimassem. Perto do acampamento cristão havia outra tribo dum povo visigodo, denominada Bugios, que por certas artimanhas e usos macabros, sempre tinham dominado os Mouros e, por isso, os cristãos logo pensaram em imitá-los, para conseguirem o triunfo.
Os Cristãos intitulando-se Bugios, armaram-se de utensílios do seu trabalho de camponeses, disfarçando-se com máscaras hediondas, objectos macabros, guizos e entoando palavras de ordem barulhentas.
Empunhando as poucas armas que possuíam, dirigiram-se com o seu Rei para a ermida do seu Santo protector, implorando auxílio e aspergindo-se com água benta. O troar dos canhões mouriscos começou a ouvir-se e logo os Cristãos, agora Bugios, sobem ao seu castelo, procuram defender-se e intransigentemente resistir ao ataque valente e feroz dos inimigos.
O Rei mouro, numa última tentativa, manda um embaixador a cavalo junto do castelo cristão propondo mais uma vez a entrega, mas não sendo aceite a proposta pelos Bugios, aparecem então os sábios doutores da lei a dar as suas opiniões a favor dos Cristãos.
Nada, porém, susteve a ferocidade mourisca. A luta continuou e os Bugios, não podendo resistir à fúria adversária, violenta e destruidora dos Mouros, nem os seus emissários e doutores nada podendo fazer para melhorar a situação, foram, assim, forçados os Bugios à capitulação.
O imperialista Rei mouro lança-se, com todos os seus apaniguados, sobre o castelo cristão e, depois de o despojar dos bens, prende o rei dos Bugios. Não valendo sequer o pedido de clemência pelos vencidos que, de joelhos, chorando amargamente a sua derrota, pediam a libertação de seu velho Rei, enquanto os doutores da lei, tentavam por todos os meios convencer o orgulhoso vencedor Mouro, da justeza do direito dos oprimidos Cristãos.
O velho Rei Cristão é levado, sob forte escolta, para lugar seguro no reino mouro, enquanto os Cristãos se reorganizam e imploram a S. João mais um milagre: a libertação do seu chefe.
Iluminados e assistidos pelo seu patrono, logo pensaram vencer os mouros pelo medo, e, assim, construíram a figura de uma enorme serpente, denominada SERPE. Empunhando essa hedionda invenção, no meio da maior algazarra, lançaram-se, loucamente para o acampamento mourisco, onde estava prisioneiro o velho Rei da Bugiada.
Os Mouros, ao presenciar tão ruidoso e macabro cortejo, não mais se lembraram do prisioneiro, fugindo espavoridos, e deixarando em paz e liberdade o velho rei dos Bugios, que logo no meio da maior alegria se juntou aos seus libertadores, correndo em direcção à ermida de S. João, entoando as palavras:
- O SANTO É NOSSO!... O SANTO É NOSSO!...
Enquanto ia dançando em agradecimento pelo novo milagre obtido.
Terminada esta grande contenda, os Mouros desistiram de todas as perseguições aos Cristãos, continuando na faina de exploradores de ouro e de outras riquezas.

Fonte: Prospecto “A lenda da Bugiada e da Mouriscada – O S. João de Sobrado, Valongo”, 1986 (texto adaptado).






Actualmente faz-se a reconstituição desta história em Sobrado:

Os Mourisqueiros
Jovens de vestes garridas, os mouriscos constituem um exército de 40 homens comandado pelo Reimoeiro. Para integrar este exército todos os jovens têm de ser solteiros, por tradição. Um exército Mourisco divide-se em Guias, sub-chefes do rei mouro, Rabos que fazem a ligação com os restantes, e os Meios que assumem papel quando os Rabos estão ocupados em outras funções.
Vestir a “pele” de Mourisqueiro é uma honra que só está ao alcance dos que provam competência para o efeito.

Os Bugios
Primorosamente vestidos e bem apetrechados, foliões, os Bugios são o bizarro da festa pelas suas cores e saltos acrobáticos. Os Bugios desfilam mascarados. O comportamento aparentemente violento contrasta com o ordeiro dos Mourisqueiros, gritando e saltando pelo recinto. O exército Bugio é comandado pelo Velho, que se distingue dos demais pelas suas vestes distintas. O exército Bugio não tem limitações, pode ir quem quiser desde os 8 aos 80.

Fonte (texto adaptado): http://chegacheio.com/index.html



Sugestões de Consulta:
http://saojoaodesobrado.blogspot.com/
http://chegacheio.com/index.html

Lendas Sanjoaninas - Lenda da Fonte da Moura (Porto)

“Como uma Deusa Saiu das Águas”

Fim da Primavera, quase Verão...
E nunca os manjericos foram tão verdes e perfumados! Seria um aviso da linda moura encantada? Quebrar-se-ia o encanto? Deixaria a sua prisão dourada?
A sua fama de grande beleza e imensas riquezas perturbara gerações e gerações de portugueses...
Agora, sonhavam outros jovens corações...
- Este ano vou quebrar o encanto da mourinha!
- Não o vais conseguir!
- Ela, quando vê alguém, foge!
- Comigo vai ser diferente!
A noite de S. João surgiu muito clara e perfumada, brilhante de luar.
Dirigiu-se à Fonte da Moura. Atentamente, olhava o relógio. Minuto a minuto, segundo a segundo, crescia a ansiedade... Meia-noite!
Ouviu um restolhar entre as ervas. Surgiu uma cobra assustadora. Entrou nas águas...Três vezes veio à superfície, três vezes mergulhou, numa dança de arrepiar...
Por artes de grande magia, transformou-se numa jovem de rara beleza.
E, como uma deusa, saiu das águas, envolta em fina túnica de seda carmesim a prata bordada.
Sacudiu os cabelos sedosos. Ondas e ondas à luz do luar!



Acercou-se dos manjericos e, aspirando profundamente o seu perfume, começou a caminhar com muita leveza e harmonia.
E, embalada no sonho de uma noite perfumada, tecida de luar, dançou a magia da noite como se escutasse a mais bela e doce melodia...
Dançou a liberdade e o amor de uma noite de solstício de Verão...
A noite mágica de S. João!
Dançou... Dançou... Dançou...
Depois, num ritual de grande feitiço, começou a pentear-se com um lindo pente de platina.
Ele pensou falar-lhe. Mas a formosa moura começou a cantar uma canção de amor. E na emoção de a ouvir, não conseguiu balbuciar um som...
Tanto desejo de a salvar! Tanto sonho!
E tudo estava preso num nó bem apertado!
As palavras não saíam... Quase doíam...
Vindo não se sabe de onde, surgiu um ganso branco. E a formosa moura acariciou, com muita ternura, as suas penas brilhantes.
O ganso, em atitude de vigia, corria de um para o outro lado da fonte. Ao mais leve ruído, parava, perscrutando todos os recantos.
E a formosa moura, sentindo-se protegida, continuava a cantar e a pentear-se com o seu lindo pente de platina.
Tentou, mais uma vez, falar-lhe, mas as palavras continuavam presas... Muito presas...
Caminhava a Lua, clareavam os céus, em breve o nascer do dia. Então, num rasgo de coragem, sacudiu o doce enleio...
Era urgente confessar-lhe o seu amor, salvá-la do longo cativeiro...
Aproximou-se, mas, sob os seus pés, estalaram algumas folhas. O ganso muito receoso estacou e a jovem parou de cantar.
Não teve tempo de balbuciar um som... O encanto de uma noite perfumada de luar desfez-se no ar...
Com enorme tristeza viu nas águas puras da Fonte a agitação de uma cobra assustadora...
E as palavras doíam...
Doíam...
Surgiram os primeiros raios de Sol de uma bela manhã de S. João! Douravam a granítica e bela cidade do Porto!
E os manjericos continuavam verdes e perfumados...
Com promessas de muitos amores...


Maria José Meireles,"Lendas de Mouras Encantadas", pp.15-21

Esta obra possui ilustrações magníficas de Alexandra Jordão Pires, outra das nossas ilustradoras predilectas...

Sugestão de leitura:

"Gostar", Pedro Mexia

"Eu e os Outros"

Um dos grandes lemas modernos diz-nos para sermos nós mesmos. Iguaizinhos a nós próprios. Sendo um lema que nos conduz à autenticidade, à auto-estima e à liberdade interior, pode, também, conduzir-nos a uma forma de egoísmo apurada. E consentida.
Como conjugar esta máxima de sermos sempre verdadeiros, iguais a nós próprios e sem concessões ao essencial, com a vida em família, o mundo do trabalho e a performance pessoal? A resposta é difícil e implica um empenho profundo na procura do melhor em nós e nos outros, assim como uma aposta constante na realização do bem.
Acontece que os outros são, ao mesmo tempo, uma necessidade e um obstáculo ao nosso desenvolvimento pessoal. A nossa tomada de consciência e à nossa noção de valores. Os outros estão lá para nos ajudar a crescer mas, também, para nos provocar o confronto, para entrar em conflito, para nos mostrar que somos todos diferentes e que a nossa realidade quase nunca coincide com a deles.
Tão difícil como dar uma resposta a esta questão do egoísmo é encontrar o justo equilíbrio entre o individual e o colectivo. Entre aquilo que nos pertence e aquilo que devemos partilhar. A primeira certeza que me ocorre neste capítulo é aquela que remete para um tempo que é só nosso, e um tempo que também é dos outros. Ou, por palavras mais simples, um tempo que todos devemos gerir de forma mais consciente.



Defender o nosso tempo e o nosso território não é um acto de egoísmo, muito pelo contrário, é o primeiro passo para nos concentrarmos no essencial. Aprender a dizer não, tão-pouco é sinónimo de egocentrismo. Dizer um «não» na altura certa é sinal de grande maturidade e liberdade interior. Um «não» dito na hora e circunstância adequadas ajuda a crescer quem o diz e quem o ouve.
O individualismo, a falta de solidariedade e a presunção de superioridade nunca podem ser o resultado deste imperativo moderno de «sermos nós próprios». A verdade, a autenticidade e a eficácia sim, são os objectivos deste ideal.
Guardar um tempo para nós, para nos ouvirmos e sentirmos, para dar voz à nossa consciência e espaço para medir os nossos actos é, assim, o primeiro passo para sermos iguais a nós mesmos. Os outros passos surgem naturalmente, na sequência deste primeiro e ajudam a encontrar o caminho mais certo. O caminho que é meu mas também pode ser dos outros, o caminho que nos leva a ser únicos e diferentes no mundo mas não nos afasta do mundo dos outros.

Laurinda Alves,“Xis ideias para pensar”,pp.22-23

Século XXVII, Cidade de Alcochete, Luísa Ducla Soares

(excerto)

No século vinte e sete, na cidade de Alcochete, vivia o Sr. Roquete, que vendia sabonete. A cidade de Alcochete era uma bela cidade, com prédios de mil andares e fábricas aos milhares. Tinha jardins com árvores fingidas e flores de plástico,

rampa de foguetões e outras atracções, entre elas uma praça de touros fenomenal, com touros de aço, telecomandados. Só havia um senão, na cidade de Alcochete... era um certo cheirete, que subia do antigo rio Tejo, transformado no maior cano de esgoto da Península Ibérica, e descia de um enorme chapéu de fumo das chaminés industriais.
Por isso o Sr. Roquete vendia tanto sabonete.
Sabonete de limão para quem cheirava a alcatrão.
Sabonete de ananás para quem cheirava a aguarrás.
Sabonete de manjerico para quem cheirava a penico.
(...)

Luísa Ducla Soares, "Três Histórias do Futuro"

PROVÉRBIO ESCONDIDO

Conta-se que uma vez se reuniram todos os Sentimentos e Qualidades dos homens, num certo lugar da Terra.
Quando o Aborrecimento já tinha resmungado, pela terceira vez, a Loucura, como sempre muito louca, propôs:
- Vamos brincar às escondidas?
A Intriga levantou a sobrancelha intrigada e a Curiosidade sem poder conter-se perguntou:
-Escondidas? Como é que se joga?
- É um jogo – explicou a Loucura – em que eu fecho os olhos e começo a contar de um a um milhão, enquanto vocês se escondem. E, quando eu tiver terminado de contar, o primeiro de vocês, que eu encontrar, ocupará meu lugar para continuar o jogo.
O Entusiasmo dançou seguido pela Euforia; a Alegria deu tantos saltos que acabou por convencer a Dúvida e até mesmo a Apatia, que nunca se interessava por nada. Mas nem todos quiseram participar: a Verdade preferiu não se esconder:
- Para quê, se no final todos me encontram? – Pensou.
A Soberba opinou que era um jogo muito tonto (no fundo o que incomodava era que a ideia não tivesse sido dela) e a Covardia preferiu não se arriscar.
- 1, 2, 3, 4 … – começou a contar a Loucura.

A primeira a esconder-se foi a Pressa, que caiu atrás da primeira pedra no caminho. A Fé subiu ao céu e a Inveja escondeu-se atrás da sombra do Triunfo que, com o seu próprio esforço, tinha conseguido subir à copa da árvore mais alta. A Generosidade quase não conseguiu esconder-se, porque cada local que encontrava parecia perfeito para algum de seus amigos: se era um lago cristalino, era ideal para a Beleza, se era a copa de uma árvore, era perfeito para a Timidez, se era uma rajada de vento, era magnífico para a Liberdade. Assim, acabou por se esconder num raio de sol.
O Egoísmo, pelo contrário, encontrou um local muito bom desde do início. Arejado, cómodo, mas só para ele.
A Mentira escondeu-se no fundo do oceano (mentira: ela escondeu-se foi atrás do arco-íris!) e a Paixão e o Desejo, no centro dos vulcões. O Esquecimento, não me recordo onde se escondeu, mas isso não é o mais importante.
Quando a Loucura já estava nos 999.999, o Amor ainda não havia encontrado um local para se esconder, pois já todos haviam sido ocupados. Finalmente, encontrou uma rosa e, carinhosamente, decidiu esconder-se entre as suas pétalas.
- Um milhão! - Terminou de contar a Loucura e começou a busca.
A primeira a aparecer foi a Pressa, apenas a três passos de uma pedra.
Depois, escutou a Fé a discutir zoologia com Deus, no céu.
Sentiu vibrar a Paixão e o Desejo nos vulcões.
Aproveitando um descuido, encontrou a Inveja e, claro, conseguiu deduzir onde estava o Triunfo.
O Egoísmo, não teve que o procurar, porque ele mesmo, sozinho, saiu do seu esconderijo, que, na verdade, era um ninho de vespas.
De tanto caminhar, sentiu sede e, ao aproximar-se de um lago, descobriu a Beleza.
A dúvida foi mais fácil ainda, pois estava sentada em cima de uma vedação, sem conseguir decidir onde havia de se esconder.
E assim foi encontrando todos: o Talento entre as ervas frescas, a Angústia numa cova escura, a Mentira atrás do arco-íris (mentira: na verdade estava no fundo do oceano!) e até o Esquecimento, que já se tinha esquecido de que estava a brincar às escondidas.
Apenas o Amor não aparecia em lado nenhum. A Loucura procurou por baixo de cada rocha do planeta, atrás de cada árvore, em cima de cada montanha e, quando estava quase a dar-se por vencida, encontrou um roseiral.
Então, pegou numa forquilha e começou a remover os ramos. Quase instantaneamente ouviu um grito de dor. Os espinhos tinham ferido o Amor nos olhos! A Loucura não sabia o que mais havia de fazer para se desculpar!... Chorou, rezou, implorou, pediu desculpas, perdão e prometeu ser guia da Loucura para todo o sempre.
Desde essa altura, desde que, pela primeira vez, se brincou às escondidas na Terra, “ O amor é cego e a loucura acompanha-o sempre.”

In http://www.pensador.info/frase/MTg3ODAz/ (texto adaptado)

História da Literatura VII- Do Surrealismo à Contemporaneidade

Arrebatamentos (como controlar)

- Nina, o jantar está na mesa.
Já vou.
- Nina, vem jantar.
Só mais um bocadinho. Estou quase a conseguir acabar a paciência.
- Nina, olha que o jantar está a arrefecer.
Ainda não consegui resolver uma única paciência desde que tenho o jogo no computador. É uma verdadeira obsessão, um arrebatamento de todo o tamanho. Ao mesmo tempo, irritante. O pai diz que é facílimo; que, ao fim e ao cabo, o computador distribui as cartas em combinações mais ou menos complicadas. O que é certo é que ele próprio – o pai, quero eu dizer – ainda não foi capaz de alinhar as cartas todas, em quatro filas, por ordem descendente.
- Não ouves, Nina? Anda jantar, filha.
Bom, lá tenho de responder, senão a mãe zanga-se. Ou pior ainda, amua, e lá temos de aguentar com empadão de arroz de couves (ugh!) pré-cozinhado…
- Já vou, mãe. Estou só a acabar uma coisa no computador.

Ana Saldanha, "Uma questão de cor", pp.9-10

Sugestão de outra leitura desta autora:
















Inês Pedrosa e Júlio Pomar, "A menina que roubava gargalhadas"







Foi por essa altura que nós ficámos a saber que a Vanessa ia deixar a escola. A nossa turma era uma violência para uma aluna tão aplicada, tão estudiosa.
Dizia o Chancas, que de vez em quando cheira a tabaco comprado na papelaria "Lili":
— Ela pode ser muito boa aluna, mas não percebe nada do mundo, não sabe o que é a liberdade. Resumindo: é um anjinho maravilhoso!
Meu Deus, se calhar, estou a ser mazinha para a pobre da Vanessa. Não estarei a ser atacada por uma grande dor de cotovelo? Às vezes, dou comigo a pensar como seria bom ter sempre excelente nos tes­tes, ver o ar atencioso dos professores, ouvir um estrondo de palmas enquanto vou a caminho do palco, muito devagarinho, para aquele momento durar o mais possível.
O Chancas Maravilha já tem quinze anos, vive relativamente perto da Barroca e, desde os doze anos, ganha dinheiro a trabalhar nas obras, à beira do pai. Anda na escola a ver se fica com o sexto ano, depois deixa de estudar. Não sei porque é que lhe chamam Chancas Maravilha, em vez de Américo. Quando entrei na escola, já toda a gente o tratava assim, e ele não se importa. Com aquelas mãos cheias de calos, se ele quisesse, de certeza que ninguém lhe chamava assim.
Os sonhos do Chancas Maravilha resumem-se a uma moto de grande cilindrada.

António Mota, "Os Heróis do 6º F", pp.44-45




Sugestão de Leitura:















Todos se retiraram, e o cemitério ficou vazio junto à campa coberta de flores frescas. E o poeta ajoelhou-se na terra e ficou por muito tempo a olhar o céu sem promes­sa de sol.
Vieram-lhe, então, à memória as palavras de Joaquim Manuel Magalhães:

Tu és o joalheiro deste salmo a tua casa
aberta aos sete fogos do Outono.
Apertaste-me tão perto passaste por mim a tua mão
fugiram de mim as criaturas
desde os outros ao trigo da manhã.
A fêmea do rosto o macho do rosto
seguem um a um os teus caminhos.
[...]
Eu olho-te à distância,
os olhos vermelhos de não poder chorar.

Maria Teresa Maia González,"Poeta (às vezes)", p.113

Sugestão de leitura:
















O cavalo adormeceu logo. Com as patas metidas entre as espadanas, as crinas da cauda espalhadas pelo chão, respirava profundamente, num ritmo certo. O homem, meio reclinado, com o ombro direito fincado na parede da vala, arrancou, alguns ramos baixos e cobriu-se com eles. Em movimento suportava bem o frio e o calor, ainda que não tão bem como o cavalo. Mas quando quieto e adormecido arrefecia rapidamente.

Agora, pelo menos enquanto o sol não aquecesse a atmosfera, iria sentir-se bem sob o conforto das folhagens. Na posição em que estava, podia ver que as árvores não se fechavam completamente em cima: uma faixa irregular, já matinal e azul, prolongava-se para diante e, de vez em quando, atravessando-a de uma banda para a outra, ou seguindo-a na mesma direcção por instantes, voavam velozmente os pássaros. Os olhos do homem cerraram-se devagar. O cheiro da seiva dos ramos arrancados entontecia-o um pouco. Puxou para cima do rosto um ramo mais farto de folhas e adormeceu. Nunca sonhava como um homem. Também nunca sonhava como sonharia um cavalo. Nas horas em que estavam acordados, as ocasiões de paz ou simples conciliação não eram muitas. Mas o sonho de um e o sonho do outro faziam o sonho do centauro.
José Saramago, "Objecto Quase"





NÃO POSSO ADIAR O AMOR PARA OUTRO SÉCULO

Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob as montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas
Não posso adiar este braço
que é uma arma de dois gumes amor e ódio
Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação
Não posso adiar o coração.

António Ramos Rosa





HÁ PALAVRAS QUE NOS BEIJAM

Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.

Alexandre O'Neill




O TEU NOME

Flor de acaso ou ave deslumbrante,
Palavra tremendo nas redes da poesia,
O teu nome, como o destino, chega,
O teu nome, meu amor, o teu nome nascendo
De todas as cores do dia!

Alexandre O'Neill


HOMEM

INSOFRIDO TEMÍVEL ADAMADO PURO SAGAZ INTELIGENTÍSSIMO
MODESTO RARO CORDIAL EFICIENTE CRITERIOSO EQUILIBRADO
RUDE VIRTUOSO MESQUINHO CORAJOSO VELHO RONCEIRO
ALTIVO ROTUNDO VIL INCAPAZ TRABALHADOR IRRECUPERÁVEL
CATITA POPULAR ELOQUENTE MASCARADO FARROUPILHA
GORDO HILARIANTE PREGUIÇOSO HIEROMÂNTICO MALÉVOLO
INFANTIL SINISTRO INOCENTE RIDÍCULO ATRASADO SOERGUIDO
DELEITÁVEL ROMÂNTICO MARRÃO HOSTIL INCRÍVEL SERENO
HIANTE ONANISTA ABOMINÁVEL RESSENTIDO PLANIFICADO
AMARGURADO EGOCÊNTRICO CAPACÍSSIMO MORDAZ PALERMA
MALCRIADO PONDEROSO VOLÚVEL INDECENTE ATARANTADO
BILTRE EMBIRRENTO FUGITIVO SORRIDENTE COBARDE MINUCIOSO
ATENTO JÚLIO PANCRÁCIO CLANDESTINO GUEDELHUDO
ALBINO MARICAS OPORTUNISTA GENTIL OBSCURO FALACIOSO
MÁRTIR MASOQUISTA DESTRAVADO AGITADOR ROÍDO
PODEROSÍSSIMO CULTÍSSIMO ATRAPALHADO PONTO MIRABOLANTE
BONITO LINDO IRRESISTÍVEL PESADO ARROGANTE DEMAGÓGICO
ESBODEGADO ÁSPERO VIRIL PROLIXO AFÁVEL TREPIDANTE
RECHONCHUDO GASPAR MAVIOSO MACACÃO ESFOMEADO
ESPANCADO BRUTO RASCA PALAVROSO ZEZINHO IMPOLUTO
MAGNÂNIMO INCERTO INSEGURÍSSIMO BONDOSO GOSMA IMPOTENTE
COISA BANANA VIDRINHO CONFIDENTE PELUDO BESTA BARAFUNDOSO
GAGO ATILADO ACINTOSO GAROTO ERRADÍSSIMO INSINUANTE
MELÍFLUO ARRAPAZADO SOLERTE HIPOCONDRÍACO
MALANDRECO DESOPILANTE MOLE MOTEJADOR ACANALHADO
TROCA-TINTAS ESPINAFRADO CONTUNDENTE SANTINHO SOTURNO
ABANDALHADO IMPECÁVEL MISERICORDIOSO VOLUPTUOSO
AMANCEBADO TIGRINO HOSPITALEIRO IMPANTE PRESTÁVEL
MOROSO LAMBAREIRO SURDO FAQUISTA AMORUDO BEIJOQUEIRO
DELAMBIDO SOEZ PRESENTE PRAZENTEIRO BIGODUDO
ESPARVOADO VALENTE SACRIPANTA RALHADOR FERIDO EXPULSO
IDIOTA MORALISTA MAU NÃO-TE-RALES AMORDAÇADO MEDONHO
COLABORANTE INSENSATO CRAVA VULGAR CIUMENTO
TACHISTA GASTO IMORALÃO IDOSO IDEALISTA INFUNDIOSO ALDRABÃO
RACISTA MENINO LADRADOR POBRE-DIABO ENJOADO
BAJULADOR VORAZ ALARMISTA INCOMPREENDIDO VÍTIMA CONTENTE
ADULADO BRUTALIZADO COITADINHO FARTO PROGRAMADO
IMBECIL CHOCARREIRO INAMOVÍVEL...

Alexandre O'Neill


PASTELARIA

Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura
Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio
Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante
Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos
frente ao precipício
e cair verticalmente no vício
Não é verdade rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola
Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que
come
Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!
Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora – ah, lá fora! – rir
de tudo
No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra

Mário Cesariny de Vasconcelos

História da Literatura VI- Do 2º Modernismo ao Neo-Realismo


AS MÃOS*

Com mãos se faz a paz se faz a guerra.
Com mãos tudo se faz e se desfaz.
Com mãos se faz o poema – e são de terra.
Com mãos se faz a guerra – e são a paz.

Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra.
Não são de pedras estas casas mas
de mãos. E estão no fruto e na palavra
as mãos que são o canto e são as armas.

E cravam-se no Tempo como farpas
as mãos que vês nas coisas transformadas.
Folhas que vão no vento: verdes harpas.

De mãos é cada flor cada cidade.
Ninguém pode vencer estas espadas:
nas tuas mãos começa a liberdade.

Manuel Alegre

* Poema declamado colectivamente pela turma, nas comemorações da Semana da Leitura, sob orientação da Directora de Turma.



Não há machado que corte a raíz ao pensamento
não há morte para o vento
não há morte

Se ao morrer o coração
morresse a luz que lhe é querida
sem razão seria a vida
sem razão

Nada apaga a luz que vive
num amor num pensamento
porque é livre como o vento
porque é livre

Não há machado que corte a raíz ao pensamento
não há morte para o vento
não há morte

Carlos de Oliveira


Pudesse Eu

Pudesse eu não ter laços nem limites
Ó vida de mil faces transbordantes
Para poder responder aos teus convites
Suspensos na surpresa dos instantes

Sophia de Mello Breyner Andresen


HORAS, HORAS SEM FIM

Horas, horas sem fim,
pesadas, fundas,
esperarei por ti
até que todas as coisas sejam mudas.
Até que uma pedra irrompa
e floresça.
Até que um pássaro me saia da garganta
e no silêncio desapareça.

Eugénio de Andrade


AS PALAVRAS

São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam;
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?

Eugénio de Andrade


URGENTEMENTE

É urgente o Amor,
É urgente um barco no mar.
É urgente destruir certas palavras
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.
É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.
Cai o silêncio nos ombros,
e a luz impura até doer.
É urgente o amor,
É urgente permanecer.

Eugénio de Andrade


FUNDO DO MAR
No fundo do mar há brancos pavores,
Onde as plantas são animais
E os animais são flores.
Mundo silencioso que não atinge
A agitação das ondas.
Abrem-se rindo conchas redondas,
Baloiça o cavalo-marinho.
Um polvo avança
No desalinho
Dos seus mil braços,
Uma flor dança,
Sem ruído vibram os espaços.
Sobre a areia o tempo poisa
Leve como um lenço.
Mas por mais bela que seja cada coisa
Tem um monstro em si suspenso.

Sophia de Mello Breyner Andresen


MANHÃ

Como um fruto que mostra
Aberto pelo meio
A frescura do centro
Assim é a manhã
Dentro da qual eu entro

Sophia de Mello Breyner Andresen


ARMA SECRETA

Tenho uma arma secreta
ao serviço das nações.
Não tem carga nem espoleta
mas dispara em linha recta
mais longe que os foguetões.

Não é Júpiter, nem Thor,
nem Snark ou outros que tais.
É coisa muito melhor
que todo o vasto teor
dos Cabos Canaverais.

A potência destinada
às rotações da turbina
não vem da nafta queimada,
nem é de água oxigenada

Erecta, na noite erguida,
em alerta permanente,
espera o sinal da partida.
Podia chamar-se VIDA.
Chama-se AMOR, simplesmente.

António Gedeão


Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.
Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.
Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.
Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.
Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:
nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.

António Gedeão

XV

As madressilvas
que em abril florescem airosas entre os brejos
parecem dizer:
Vede como somos belas!
e os namorados
que na estrada passam, abraçados, aos beijos,
erguem os braços para colhê-las...


Cântico Negro

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

José Régio



Sagres

Vinha de longe o mar...
Vinha de longe, dos confins do medo...
Mas vinha azul e brando, a murmurar
Aos ouvidos da terra um cósmico segredo.

E a terra ouvia, de perfil agudo,
A confidencial revelação
Que iluminava tudo
Que fora bruma na imaginação.

Era o resto do mundo que faltava
(Porque faltava mundo!).
E o agudo perfil mais se aguçava,
E o mar jurava cada vez mais fundo.

Sagres sagrou então a descoberta
Por descobrir:
As duas margens da certeza incerta
Teriam de se unir!

Miguel Torga


Comunicado

Coimbra, 18 de Abril de 1961.

Na frente ocidental nada de novo.
O povo
Continua a resistir.
Sem ninguém que lhe valha,
Geme e trabalha
Até cair.

Miguel Torga*

* Afinal a CRISE já dura há muito...

História da Literatura V- 1º Modernismo


II
O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do mundo...

Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar...

Amar é a eterna inocência,
E a única inocência é não pensar...

Alberto Caeiro


ODE TRIUNFAL (excerto inicial)

A dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.
Ó rodas, ó engrenagem, r-r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!
(…)
Londres, 1914 – Junho.

Álvaro de Campos

Para ser grande, sê inteiro

Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

Ricardo Reis


GLÁDIO (excerto)

A Alberto da Cunha Dias

Deu-me Deus o Seu Gládio, porque eu faça
A Sua santa guerra.
Sagrou-me Seu em génio e em desgraça
Às horas em que um frio vento passa
Por sobre a fria terra.
Pôs-me as mãos sobre os ombros e dourou-me
A fronte com o olhar:
E esta febre de Além, que me consome,
E este querer-justiça são Seu Nome
Dentro em mim a vibrar.

Fernando Pessoa*
Aparecerão aqui também poemas dos seus heterónimos mais famosos - Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos