quarta-feira, 24 de junho de 2009

História da Literatura VII- Do Surrealismo à Contemporaneidade

Arrebatamentos (como controlar)

- Nina, o jantar está na mesa.
Já vou.
- Nina, vem jantar.
Só mais um bocadinho. Estou quase a conseguir acabar a paciência.
- Nina, olha que o jantar está a arrefecer.
Ainda não consegui resolver uma única paciência desde que tenho o jogo no computador. É uma verdadeira obsessão, um arrebatamento de todo o tamanho. Ao mesmo tempo, irritante. O pai diz que é facílimo; que, ao fim e ao cabo, o computador distribui as cartas em combinações mais ou menos complicadas. O que é certo é que ele próprio – o pai, quero eu dizer – ainda não foi capaz de alinhar as cartas todas, em quatro filas, por ordem descendente.
- Não ouves, Nina? Anda jantar, filha.
Bom, lá tenho de responder, senão a mãe zanga-se. Ou pior ainda, amua, e lá temos de aguentar com empadão de arroz de couves (ugh!) pré-cozinhado…
- Já vou, mãe. Estou só a acabar uma coisa no computador.

Ana Saldanha, "Uma questão de cor", pp.9-10

Sugestão de outra leitura desta autora:
















Inês Pedrosa e Júlio Pomar, "A menina que roubava gargalhadas"







Foi por essa altura que nós ficámos a saber que a Vanessa ia deixar a escola. A nossa turma era uma violência para uma aluna tão aplicada, tão estudiosa.
Dizia o Chancas, que de vez em quando cheira a tabaco comprado na papelaria "Lili":
— Ela pode ser muito boa aluna, mas não percebe nada do mundo, não sabe o que é a liberdade. Resumindo: é um anjinho maravilhoso!
Meu Deus, se calhar, estou a ser mazinha para a pobre da Vanessa. Não estarei a ser atacada por uma grande dor de cotovelo? Às vezes, dou comigo a pensar como seria bom ter sempre excelente nos tes­tes, ver o ar atencioso dos professores, ouvir um estrondo de palmas enquanto vou a caminho do palco, muito devagarinho, para aquele momento durar o mais possível.
O Chancas Maravilha já tem quinze anos, vive relativamente perto da Barroca e, desde os doze anos, ganha dinheiro a trabalhar nas obras, à beira do pai. Anda na escola a ver se fica com o sexto ano, depois deixa de estudar. Não sei porque é que lhe chamam Chancas Maravilha, em vez de Américo. Quando entrei na escola, já toda a gente o tratava assim, e ele não se importa. Com aquelas mãos cheias de calos, se ele quisesse, de certeza que ninguém lhe chamava assim.
Os sonhos do Chancas Maravilha resumem-se a uma moto de grande cilindrada.

António Mota, "Os Heróis do 6º F", pp.44-45




Sugestão de Leitura:















Todos se retiraram, e o cemitério ficou vazio junto à campa coberta de flores frescas. E o poeta ajoelhou-se na terra e ficou por muito tempo a olhar o céu sem promes­sa de sol.
Vieram-lhe, então, à memória as palavras de Joaquim Manuel Magalhães:

Tu és o joalheiro deste salmo a tua casa
aberta aos sete fogos do Outono.
Apertaste-me tão perto passaste por mim a tua mão
fugiram de mim as criaturas
desde os outros ao trigo da manhã.
A fêmea do rosto o macho do rosto
seguem um a um os teus caminhos.
[...]
Eu olho-te à distância,
os olhos vermelhos de não poder chorar.

Maria Teresa Maia González,"Poeta (às vezes)", p.113

Sugestão de leitura:
















O cavalo adormeceu logo. Com as patas metidas entre as espadanas, as crinas da cauda espalhadas pelo chão, respirava profundamente, num ritmo certo. O homem, meio reclinado, com o ombro direito fincado na parede da vala, arrancou, alguns ramos baixos e cobriu-se com eles. Em movimento suportava bem o frio e o calor, ainda que não tão bem como o cavalo. Mas quando quieto e adormecido arrefecia rapidamente.

Agora, pelo menos enquanto o sol não aquecesse a atmosfera, iria sentir-se bem sob o conforto das folhagens. Na posição em que estava, podia ver que as árvores não se fechavam completamente em cima: uma faixa irregular, já matinal e azul, prolongava-se para diante e, de vez em quando, atravessando-a de uma banda para a outra, ou seguindo-a na mesma direcção por instantes, voavam velozmente os pássaros. Os olhos do homem cerraram-se devagar. O cheiro da seiva dos ramos arrancados entontecia-o um pouco. Puxou para cima do rosto um ramo mais farto de folhas e adormeceu. Nunca sonhava como um homem. Também nunca sonhava como sonharia um cavalo. Nas horas em que estavam acordados, as ocasiões de paz ou simples conciliação não eram muitas. Mas o sonho de um e o sonho do outro faziam o sonho do centauro.
José Saramago, "Objecto Quase"





NÃO POSSO ADIAR O AMOR PARA OUTRO SÉCULO

Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob as montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas
Não posso adiar este braço
que é uma arma de dois gumes amor e ódio
Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação
Não posso adiar o coração.

António Ramos Rosa





HÁ PALAVRAS QUE NOS BEIJAM

Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.

Alexandre O'Neill




O TEU NOME

Flor de acaso ou ave deslumbrante,
Palavra tremendo nas redes da poesia,
O teu nome, como o destino, chega,
O teu nome, meu amor, o teu nome nascendo
De todas as cores do dia!

Alexandre O'Neill


HOMEM

INSOFRIDO TEMÍVEL ADAMADO PURO SAGAZ INTELIGENTÍSSIMO
MODESTO RARO CORDIAL EFICIENTE CRITERIOSO EQUILIBRADO
RUDE VIRTUOSO MESQUINHO CORAJOSO VELHO RONCEIRO
ALTIVO ROTUNDO VIL INCAPAZ TRABALHADOR IRRECUPERÁVEL
CATITA POPULAR ELOQUENTE MASCARADO FARROUPILHA
GORDO HILARIANTE PREGUIÇOSO HIEROMÂNTICO MALÉVOLO
INFANTIL SINISTRO INOCENTE RIDÍCULO ATRASADO SOERGUIDO
DELEITÁVEL ROMÂNTICO MARRÃO HOSTIL INCRÍVEL SERENO
HIANTE ONANISTA ABOMINÁVEL RESSENTIDO PLANIFICADO
AMARGURADO EGOCÊNTRICO CAPACÍSSIMO MORDAZ PALERMA
MALCRIADO PONDEROSO VOLÚVEL INDECENTE ATARANTADO
BILTRE EMBIRRENTO FUGITIVO SORRIDENTE COBARDE MINUCIOSO
ATENTO JÚLIO PANCRÁCIO CLANDESTINO GUEDELHUDO
ALBINO MARICAS OPORTUNISTA GENTIL OBSCURO FALACIOSO
MÁRTIR MASOQUISTA DESTRAVADO AGITADOR ROÍDO
PODEROSÍSSIMO CULTÍSSIMO ATRAPALHADO PONTO MIRABOLANTE
BONITO LINDO IRRESISTÍVEL PESADO ARROGANTE DEMAGÓGICO
ESBODEGADO ÁSPERO VIRIL PROLIXO AFÁVEL TREPIDANTE
RECHONCHUDO GASPAR MAVIOSO MACACÃO ESFOMEADO
ESPANCADO BRUTO RASCA PALAVROSO ZEZINHO IMPOLUTO
MAGNÂNIMO INCERTO INSEGURÍSSIMO BONDOSO GOSMA IMPOTENTE
COISA BANANA VIDRINHO CONFIDENTE PELUDO BESTA BARAFUNDOSO
GAGO ATILADO ACINTOSO GAROTO ERRADÍSSIMO INSINUANTE
MELÍFLUO ARRAPAZADO SOLERTE HIPOCONDRÍACO
MALANDRECO DESOPILANTE MOLE MOTEJADOR ACANALHADO
TROCA-TINTAS ESPINAFRADO CONTUNDENTE SANTINHO SOTURNO
ABANDALHADO IMPECÁVEL MISERICORDIOSO VOLUPTUOSO
AMANCEBADO TIGRINO HOSPITALEIRO IMPANTE PRESTÁVEL
MOROSO LAMBAREIRO SURDO FAQUISTA AMORUDO BEIJOQUEIRO
DELAMBIDO SOEZ PRESENTE PRAZENTEIRO BIGODUDO
ESPARVOADO VALENTE SACRIPANTA RALHADOR FERIDO EXPULSO
IDIOTA MORALISTA MAU NÃO-TE-RALES AMORDAÇADO MEDONHO
COLABORANTE INSENSATO CRAVA VULGAR CIUMENTO
TACHISTA GASTO IMORALÃO IDOSO IDEALISTA INFUNDIOSO ALDRABÃO
RACISTA MENINO LADRADOR POBRE-DIABO ENJOADO
BAJULADOR VORAZ ALARMISTA INCOMPREENDIDO VÍTIMA CONTENTE
ADULADO BRUTALIZADO COITADINHO FARTO PROGRAMADO
IMBECIL CHOCARREIRO INAMOVÍVEL...

Alexandre O'Neill


PASTELARIA

Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura
Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio
Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante
Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos
frente ao precipício
e cair verticalmente no vício
Não é verdade rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola
Que afinal o que importa não é haver gente com fome
porque assim como assim ainda há muita gente que
come
Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!
Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo
à saída da pastelaria, e lá fora – ah, lá fora! – rir
de tudo
No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra

Mário Cesariny de Vasconcelos

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