quarta-feira, 24 de junho de 2009

História da Literatura IV- Romantismo, Realismo, Simbolismo, Modernismo


Fumo

Longe de ti são ermos os caminhos,
Longe de ti não há luar nem rosas,
Longe de ti há noites silenciosas,
Há dias sem calor, beirais sem ninhos!

Meus olhos são dois velhos pobrezinhos
Perdidos pelas noites invernosas...
Abertos, sonham mãos cariciosas,
Tuas mãos doces, plenas de carinhos!

Os dias são Outonos: choram... choram...
Há crisântemos roxos que descoram...
Há murmúrios dolentes de segredos...

Invoco o nosso sonho! Estendo os braços!
E ele é, ó meu Amor, pelos espaços,
Fumo leve que foge entre os meus dedos!...

Florbela Espanca


BALADA DA NEVE

Batem leve, levemente,
como quem chama por mim.
Será chuva? Será gente?
Gente não é, certamente
e a chuva não bate assim.

É talvez a ventania:
mas há pouco, há poucochinho,
nem uma agulha bulia
na quieta melancolia
dos pinheiros do caminho...

Quem bate, assim, levemente,
com tão estranha leveza,
que mal se ouve, mal se sente?
Não é chuva, nem é gente,
nem é vento com certeza.

Fui ver. A neve caía
do azul cinzento do céu,
branca e leve, branca e fria...
– Há quanto tempo a não via!
E que saudades, Deus meu!

Olho-a através da vidraça.
Pôs tudo da cor do linho.
Passa gente e, quando passa,
os passos imprime e traça
na brancura do caminho...

Fico olhando esses sinais
da pobre gente que avança,
e noto, por entre os mais,
os traços miniaturais
duns pezitos de criança...

descalcinhos, doridos...
a neve deixa inda vê-los,
primeiro, bem definidos,
depois, em sulcos compridos,
porque não podia erguê-los!...

Que quem já é pecador
sofra tormentos, enfim!
Mas as crianças, Senhor,
porque lhes dais tanta dor?!...
Porque padecem assim?!...

E uma infinita tristeza,
uma funda turbação
entra em mim, fica em mim presa.
Cai neve na Natureza
e cai no meu coração.

Augusto Gil


XI

Um sonho.

Na messe, que enlourece, estremece a quermesse...
O sol, o celestial girassol, esmorece...
E as cantilenas de serenos sons amenos
Fogem fluidas, fluindo à fina flor dos fenos...
(...)
Flor! enquanto na messe estremece a quermesse
E o sol, o celestial girassol esmorece,
Deixemos estes sons tão serenos e amenos,
Fujamos, Flor! à flor destes floridos fenos...

Soam vesperais as Vésperas...
Uns com brilhos de alabastros,
Outros louros como nêsperas,
No céu pardo ardem os astros...

Como aqui se está bem! Além freme a quermesse...
– Não sentes um gemer dolente que esmorece?
São os amantes delirantes que em amenos
Beijos se beijam, Flor! à flor dos frescos fenos...

Eugénio de Castro, "Oaristos" (texto com supressões)



Lembrou-lhe de repente a notícia do jornal, a chegada do primo Basílio...
Um sorriso vagaroso dilatou-lhe os beicinhos vermelhos e cheios. — Fora o seu primeiro namoro, o primo Basílio! Tinha ela então dezoito anos! Ninguém o sabia, nem Jorge, nem Sebastião...
De resto fora uma criancice: ela mesmo, às vezes, ria, recordando as pieguices ternas de então, certas lágrimas exageradas! Devia estar mudado o primo Basílio. Lembrava-se bem dele — alto, delgado, um ar fidalgo, o pequenino bigode preto levantado, o olhar atrevido, e um jeito de meter as mãos nos bolsos das calças fazendo tilintar o dinheiro e as chaves! Aquilo começara em Sintra, por grandes partidas de bilhar muito alegres, na quinta do tio João de Brito, em Colares. Basílio tinha chegado então de Inglaterra: vinha muito bife, usava gravatas escarlates passadas num anel de ouro, fatos de flanela branca, espantava Sintra! Era na sala de baixo pintada a oca, que tinha um ar antigo e morgado; uma grande porta envidraçada abria para o jardim, sobre três degraus de pedra.

Eça de Queirós, “O Primo Basílio”, p.19

XV

São treze dias decorridos do mês de Março de 1805.
Está Simão num quarto de malta das cadeias da Relação. Um catre de tábuas, um colchão de embarque, uma cadeira de pinho e um pequeno pacote de roupa, colocado no lugar do travesseiro, são a sua mobília. Sobre a mesa tem um caixote de pau-preto, que contém as cartas de Teresa, ramilhetes secos, os seus manuscritos do cárcere de Viseu e um avental de Mariana, o último com que ela, no dia do julgamento, enxugou as lágrimas e arrancara de si no primeiro instante de demência.
Simão relê as cartas de Teresa, abre os envoltórios que encerram as flores ressequidas, contempla o avental de linho, procurando esvaídos vestígios das lágrimas. Depois encosta a face e o peito aos ferros da sua janela, e avista os horizontes boleados pelas serras de Valongo e Gralheira, e cortados pelas ribas pitorescas de Gaia, do Candal, de Oliveira e do mosteiro da serra do Pilar. É um dia lindo. Reflectem-se do azul do céu os mil matizes da Primavera. -Tem aromas o ar, e a viração fugitiva dos jardins derrama no éter as urnas que roubou aos canteiros. Aquela indefinida alegria que parece reluzir nas legiões de espíritos que se geram ao sol de Março, rejubila a natureza que, toda pompa de luz e flores, se está namorando do calor que a vai fecundando.

Camilo Castelo Branco, “Amor de Perdição”


CONDE NILO

Conde Nilo, conde Nilo
Seu cavalo vai banhar;
Enquanto o cavalo bebe,
Armou um lindo cantar.
Com o escuro que fazia
El-rei não o pode avistar.
Mal sabe a pobre da infanta
Se há-de rir, se há-de chorar.
— «Cala, minha filha, escuta,
Ouvirás um bel cantar:
Ou são os anjos no Céu,
Ou a sereia no mar.»
— «Não são os anjos no Céu,
Nem a sereia no mar,
É o conde Nilo, meu pai,
Que comigo quer casar.»
— «Quem fala no conde Nilo,
Que se atreve a nomear
Esse vassalo rebelde
Que eu mandei desterrar?»
— «Senhor, a culpa é só minha,
A mim deveis castigar:
Não posso viver sem ele…
Fui eu que o mandei chamar.»
— «Cala-te, filha traidora,
Não te queiras desonrar.
Antes que o dia amanheça
Vê-lo-ás ir a degolar.»— «Algoz que o matar a ele,
A mim me tem de matar;
Adonde a cova lhe abrirem,
A mim me têm de enterrar.»


Por quem dobra aquela campa,
Por quem está a dobrar?
— «Morto é o conde Nilo,
A infanta já a expirar.
Abertas estão as covas,
Agora os vão enterrar:
Ele no adro da igreja,
A infanta ao pé do altar.»
De um nascera um cipreste,
E do outro um laranjal;
Um crescia, outro crescia,
Coas pontas se iam beijar.
El-rei, apenas tal soube,
Logo os mandara cortar.
Um deitava sangue vivo,
O outro sangue real;
De um nascera uma pomba,
De outro um pombo torcaz.
Senta-se el-rei a comer,
Na mesa lhe iam poisar:
— «Mal haja tanto querer,
E mal haja tanto amar!
Nem na vida nem na morte
Nunca os pude separar.»

Almeida Garrett, "Romanceiro"


Apenas, porém, dera os primeiros passos, soltou um gemido agudo e ficou imóvel. Diante dela, realidade ou fantasma, estava a origem dos seus terrores secretos. Era o gardingo * que a amara, que ela cria morto, e cuja imagem vingadora vinha mais uma vez atormentá-la. O vulto cravara nela um olhar ardente, que a fascinava. Sorriso doloroso lhe pousava nos lábios. Estendeu o braço, segurando a mão de Hermengarda, que pretendeu recuar e não pôde. Como petrificada, parecia que os pés se lhe haviam enraizado no chão da caverna. Aquela mão, que segurava a sua escaldando de febre, era gelada como a de um mono. A vida do gardingo tinha-se concentrado toda no coração, que lhe despedaçavam duas ideias, horríveis porque associadas: o amor correspondido e tornado ao mesmo tempo maldito, monstruoso, impossível por uma palavra fatal, que lá estava escrita em caracteres de fogo, e que ele via, escutava, sentia — o sacerdócio!
— Oh, Deus to pague! — disse Eurico em voz baixa e lenta —, que lançaste na tão longa noite da minha alma um raio fugitivo de luz, luz santa e pura de contentamento e felicidade!... Há dez anos que não me alumia, e ela é tão bela, ainda quando passa como o relâmpago!...

Alexandre Herculano, “Eurico, o presbítero”

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